ESPIRITUALIDADE E DESENVOLVIMENTO VOCACIONAL: AMBIGUIDADES E ENSAIO DE CLARIFICAÇÃO
ESPIRITUALIDADE E DESENVOLVIMENTO VOCACIONAL: AMBIGUIDADES E ENSAIO DE CLARIFICAÇÃO
Palavras-chave: Desenvolvimento vocacional, espiritualidade
Resumo
A espiritualidade parece surgir como um fenómeno de moda nos vários discursos do saber, nomeadamente nas Ciências Humanas e, concretamente, na Psicologia. O que antes era um tabu, em defesa do discurso positivista agnóstico, hoje parece emergir como uma necessidade em resposta aos impasses deixados em aberto pelo projecto da modernidade, na sua arrogância desmesurada de se constituir como uma cosmovisão. Os autores abordam o fenómeno da emergência da espiritualidade no desenvolvimento psicológico, concretamente na dimensão vocacional, e tentam clarificar este cenário de múltiplas expressões (com os riscos de um sincretismo pantanoso!) que a dimensão do espiritual pode assumir, para evitar que sob “este guarda chuva” espiritual se possa abrigar uma multiplicidade de realidades diferenciadas e/ou até contraditórias geradoras de fortes ambiguidades.
Esta reflexão pretende ser um contributo de clarificação do conceito, hoje ambíguo, do nosso ponto de vista, de espiritualidade, suscitada pela constatação de que os vários discursos do saber, nomeadamente nas Ciências Humanas, na Literatura, na Sociologia, na Antropologia, na Filosofia e até na Psicologia, começam a referir-se a esta dimensão, parecendo constituir-se num fenómeno de moda. Hoje fala-se do espiritual nos vários domínio do desenvolvimento psicológico, entre outros, no vocacional (Savickas, 1996), na educação (Best, 1996, 2001) e como uma dimensão do desenvolvimento psicológico geral (Fowler, 1983).
Há já uns tempos que o nosso grupo de trabalho, ligado à disciplina de Psicologia e Orientação Vocacional do 4º ano da licenciatura, das áreas de especialização 4 e 5, tem vindo a discutir sobre a legitimidade ou não legitimidade de recorrer ao conceito espiritualidade/espirito para a conceptualização do desenvolvimento vocacional ou de outras dimensões do desenvolvimento psicológico colocando-se-nos o desafio da urgência de tentar clarificar o estado da questão. Espera-se que esta reflexão, possa ser um contributo mais para a clarificação de um conceito que nos parece cada vez mais pantanoso.
- Da conflitualidade para a diferenciação/afirmação
o trajecto epistemológico da construção dos saberes, no âmbito das várias ciências humanas, tem sido marcado por uma forte conflitualidade, nomeadamente, entre os discursos metafísicos/especulativos (teologia e filosofia) e os discursos ditos científicos, como a Psicologia. Esta conflitualidade manifestou-se historicamente pela emergência de discursos paralelos, e até polarizados, que é explicável, em parte, pela necessidade de afirmação de um estatuto de cientificidade por parte da Psicologia.
Na segunda metade do século XIX, a Psicologia, ao demarcar-se da Filosofia e da Teologia, assume preferencialmente, como forma de diferenciação e afirmação, as metodologias das Ciências Naturais; ou seja, os métodos experimentais e estatísticos, contestando as metodologias especulativas e introspeccionistas da filosofia e da teologia por considerá-las anti-científicas. É esta narrativa positivista, objectivista, quantificável que fascina as metodologias, ditas científicas, da construção dos saberes e da prática psicológica que vai acentuar o divórcio e as rupturas entre a Psicologia e os discursos fundamentados em ontologias metafísicas.
A ciência mecanicista do paradigma newtoniano-cartesiano que dominou o projecto da modernidade, e conheceu o seu apogeu no século XIX e primeira metade do século XX, no qual se inscreve e revê a ciência Psicológica, acentua o ostracismo e o silêncio a que foi votado o discurso teológico e a dimensão espiritual da existência humana por parte da Psicologia durante todo o século XX. Aliás, a marginalidade durante décadas, e neste momento o silêncio cúmplice (?), do tema religião/espiritualidade, nos currículos das várias licenciaturas em Psicologia nas várias Faculdades do nosso País é ainda hoje uma realidade, transformando-se num tema quase tabu, porque explicitá-lo seria pôr em causa o estatuto de cientificidade da Psicologia e entrar num discurso da irracionalidade da mera crença que carece de uma justificação, como se a complexidade do humano resistisse a uma análise meramente científica e positivista.
No entanto, deve salientar-se que algo está a mudar em vários países da Europa e nos E.U.A. vislumbrando-se, progressivamente, uma integração progressiva da espiritualidade nos currículos e uma crescente preocupação de realizar investigações despreconceituosas sobre o impacto da dimensão espiritual no desenvolvimento psicológico.
Saliente-se que em situações de rupturas de relações, mesmo a nível das epistemologias dos saberes, existe sempre uma corresponsabilidade recíproca. E se a Psicologia teve as suas responsabilidades na ostracização do discurso teológico pelas razões já sublinhadas, também a Teologia foi realizando as suas investidas, construindo o seu discurso com ataques preconceituosos em relação à Psicologia, fragilizada pelas investidas positivistas/racionalistas e freudianas que inconscientemente nunca ultrapassou (os medos e fantasmas da racionalidade e invasão da suas áreas de reflexão e intervenção), impedindo-a de perceber os contributos que a Psicologia pode efectivamente proporcionar em termos de compreensão do humano, rentabilizando-os para alicerçar e fundamentar o seu próprio discurso, limitando o seu diálogo defensivo ao gueto da filosofia escolástica, da neo-escolástica e ao personalismo humanista.
Numa cultura actual, onde se vai fazendo a apologia da diversidade, da multiculturalidade, do diálogo democrático, da tolerância, do respeito pelas várias mundividências, da multidisciplinaridade, não faz sentido os discursos redutores da exclusividade e dos saberes fragmentados, nomeadamente em ciências que tem como objecto de análise a mesma realidade: o humano, mas deve-se afirmar progressivamente uma epistemologia alicerçada nos princípios da complementaridade, onde os vários níveis de análise e de compreensão da complexidade do humano devem ser respeitados nas suas especificidades como contributo de explicação e integração da complexidade da experiência humana, tornando-a mais viável em qualidade de vida.
São os impasses sobre a natureza do conhecimento e os limites da ciência que ficaram em aberto pelo projecto da modernidade, que colocam em evidência a possibilidade de coexistência de uma multiplicidade de pontos de vista sobre o humano sendo todos eles válidos, enquanto olhares complementares, contribuindo, uns mais que outros, para a compreensão e integração da experiência humana. Assim, os saberes da ciência psicológica proporcionam um nível de análise possível, no âmbito desta ciência, que não visa substituir outros olhares possíveis sobre o humano, mas pode contribuir para iluminar esta realidade complexa. Assim a Psicologia pode proporcionar ao discurso teológico “ferramentas” ou instrumentos conceptuais e metodológicos que permitam compreender de forma mais global a experiência espiritual; bem como, a Teologia, na análise da experiência espiritual, poderá devolver à Psicologia processos psicológicos mais complexos que resistem a uma análise meramente racional, científica e objectivista/positivista.
- A emergência das dimensões do espiritual numa cultura da fruição do efémero
A crise do projecto da modernidade que deixou em aberto as grandes questões do sentido da vida, colocando em causa, e até mesmo desmoronando, os valores que faziam parte das matrizes culturais configuradoras das identidades nacionais, parece ter aberto o espaço para a emergência das dimensões mais espirituais pelo vazio produzido e a não realização das expectativas geradas pela cientificidade e pela revolução tecnológica.
Nesta cultura de “pós-modernidade” onde se constata um esvaziamento de valores e referências, onde não existem grandes causas sociais a promover e onde as grandes narrativas culturais, religiosas, políticas e nacionais, que poderiam dar sentido à vida se desmoronam; numa cultura consumista e hedonista marcada pelo efémero, pelo vazio interior e esteticização do quotidiano (Gonçalves & Coimbra, 2000) intelectuais e pensadores, como André Malraux, começam a profetizar que o século XXI será o século da espiritualidade.
Nos anos 80 e 90 os media começam a divulgar um retorno ao homem religioso, expresso no rejuvenescimento das grandes religiões, formação de novos movimentos religiosos, a simpatia pelas práticas de meditação oriental, simpatia da cultura ocidental pela espiritualidade budista (fenómeno de Dalai Lama)..., após um processo de secularização que atingiu o seu limite com a crise da modernidade na tentativa falhada de silenciar a experiência religiosa pela apologia da capacidades ilimitadas de erudição do homem. Como ilustração do afirmado anteriormente, num estudo internacional sobre valores (Grom, 1994), realizado nos anos 90 com uma população a partir dos 18 anos, 93% dos norte-americanos e 71% dos europeus ocidentais afirmavam acreditar em Deus. 48% dos europeus diziam participarem habitualmente nas celebrações litúrgicas e orarem com frequência, sublinhando que a sua fé lhe fornecia apoio e segurança pessoal.
Confrontados com este cenário de múltiplas expressões (com os riscos de um sincretismo religioso) que a dimensão do espiritual/religioso pode assumir deveremos colocar um conjunto de questões para tentar clarificar a dimensão espiritual da experiência humana: o que caracteriza a experiência eminentemente espiritual? Será possível integrar as múltiplas expressões ditas espirituais num conceito unificador? É legítimo falar de espiritual sem afirmar o Transcendente? Ou seja, quando se fala hoje da dimensão espiritual do humano está-se a falar da mesma coisa? O que há de comum e de diferente nesta categoria denominada espiritualidade?
Vamos tentar dar um a resposta, ainda que breve, na parte final desta reflexão.
- A ambiguidade do conceito Espiritual
A literatura não apresenta uma definição consensual e unívoca do conceito espiritual; por isso, hoje começa a estar na moda o termo espiritual nos vários discursos do saber, o que não favorece a sua clarificação. O que antes era um tabu em defesa do discurso positivista e agnóstico, hoje parece ser uma necessidade, talvez para que os discursos não surjam como redutores; ou então, será a expressão do desencanto, ao tomarem consciência dos limites , em que os intelectuais positivistas caíram ao substituírem a fé no Transcendente nas capacidades ilimitadas do homem (ciência e técnica), expressão metafórica da tentação do humano primordial de “serem como deuses” (Gén, 3, 5).
Face a esta panóplia de conceitos é importante tentar fazer uma discriminação dos mesmos, porque sob “este guarda chuva” espiritual pode proteger-se uma série de realidades diferenciadas e/ou até contraditórias.
A utilização abusiva e arbitrária do conceito espiritualidade sem explícita e implicitamente afirmar a relação com o Transcendente, ou até mesmo silenciando-o, gera fortes ambiguidades e mal-entendidos. Hoje fala-se da espiritualidade do trivial, do quotidiano, do terreno, do pessoal, do conjugal, do trabalho, do vocacional... parecendo circunscrever-se o espiritual ao desenvolvimento pleno das várias dimensões do sujeito psicológico, numa dimensão meramente horizontalista, concretizadas nas diversas expressões do pensamento: nas várias ciências, na tecnologia, na arte, no compromisso político e social e no reconhecimento e exercício da liberdade em ordem a uma sociedade mais solidária e justa.
Esta concepção do espiritual tem as suas raízes no dualismo cartesiano (corpo/espirito) corporizado pelo paradigma modernista racionalista atingindo o seu apogeu na filosofia materialista contemporânea (marxismo, existencialismo, empirismo lógico e estruturalismo) reduzindo o espiritual à consciência, ao psicológico e ao desenvolvimento pleno do self. Isto é, a modernidade afirmava que a consciência não pode transcender-se a si mesma, ou seja, circunscreve-se à esfera do espaço-temporal, ou seja, confina-se à historicidade efémera. O princípio da imanência faz depender a consciência e a subjectividade de uma liberdade que é regra e princípio, por si mesma, não sendo possível encontrar um princípio superior à própria consciência; ou seja, imanência e transcendência são incompatíveis, é o espiritualismo imanentista da modernidade, (Fabro, 1987).
A emergência destas novas formas de espiritualismos secularizados e imanentistas não será o reflexo da falência do projecto da modernidade que, após a tentativa falhada de profanização do Sagrado, pretende sacralizar o profano, talvez como expressão da resistência arrogante de afirmação/abertura ao Transcendente?
- A espiritualidade e o desenvolvimento vocacional
Também no desenvolvimento vocacional se vem aludindo à dimensão do espiritual (?) como ingrediente importante da realização plena do self (Savickas, 1996). O espirito é conceptualizado como uma força activadora ou princípio energético (ruach bíblico?) que garante vida ao organismo físico.
O sujeito mobilizado pelo espírito, princípio de vida, experiencia uma energia plena, entusiasmo e coragem que o projecta numa determinada direcção, em ordem a uma plenificação/totalidade.
O movimento do espirito é no sentido da cooperação com os outros e no assumir de corresponsabilidades comunitárias, garantia do bem estar psicológico e da realização plena do self.
Sendo o trabalho um contexto privilegiado do desenvolvimento humano, através do qual temos oportunidade para expressarmos todo o nosso potencial e nos desenvolvermos espontaneamente na relação que estabelecemos com os outros, é nele (trabalho) que a dimensão do espiritual se torna mais relevante.
O trabalho, quando mobilizado pelo espirito, não só promove a totalidade do self como contraria as lógicas profissionais comandadas pelo “carreirismo”. Assim, a lógica da “espiritualidade” do trabalho não se centra, prioritariamente, nas dimensões instrumentais e nos significados extrínsecos do trabalho (poder, prestígio, possessão) –– dimensão marcadamente egocêntrica e instrumental–– mas investe nos significados intrínsecos que promovem a ”plenitude/totalidade” do self pela emergência dos valores como a realização pessoal, a cooperação e a solidariedade; “o espirito que mobiliza o trabalho contribui para perceber que a vida é uma grande celebração da solidariedade, do amor, da fraternidade e da admiração do outro, mediado pelo trabalho” (Savickas, 1996).
Não estaremos face uma concepção utópica e “messiânica” do trabalho que nada tem a ver com as lógicas mais competitivas com que somos, actualmente, confrontados, numa sociedade onde o desemprego aumenta e os poucos lugares disponíveis são disputados pelos mais fortes?
Poderemos denominar de espiritual a este movimento de abertura aos outros, de descentração do egocentrismo para a cooperação, quer no desempenho do papel profissional quer nos outros papéis da existência humana? Não será identificar o espiritual com os níveis de maior complexidade do desenvolvimento psicológico global? Não é reduzir o espiritual ao eminentemente psicológico, à consciência/self? O espiritual não implicará o assumir explicitamente uma relação com o Transcendente?
Porquê recorrer a um conceito de um nível de análise teológico se existem conceitos para sublinhar a realidade pretendida no âmbito da Psicologia? Penso que estas ambiguidades não favorecem nem a reflexão teológica nem o discurso psicológico, quando muito geram confusões e intromissões nos vários níveis de análise, que são igualmente importantes como pontos de vista diferenciados e complementares na compreensão da complexa realidade do humano e na construção de uma identidade profissional.
- Ensaio de clarificação do Conceito
O conceito espiritual, etimologicamente, provém do latim “spiritus” que, por sua vez, é tradução do termo original hebraico “ruach” que significa “sopro de vida”, “alento”, “energia”, “dinamismo”; ou seja, Aquele que dá vida e sentido pleno aos limites do humano e compreensão ao universo. Partindo desta base primordial, o que é comum ao conceito global do espiritual é esta abertura do humano ao
Transcendente, realidade meta-empírica, que garante a vitalidade “ruach” à precariedade do humano; ou seja, parte-se do pressuposto –– a fé? –– que o humano só viverá de sentidos plenos caso viva esta abertura ao Transcendente, que é Sagrado, Fascinante, Misterioso, Totalmente Outro, transcendendo esta realidade inter-humana, mas manifestando-se nela para a transformar/santificar (Eliade, 1967). A forma através da qual os humanos comunicam com o sagrado é o simbólico e a mediação; daí que as relações do humano, movidas pelo “ruach”, é a única forma de se relacionar com o sagrado.
Shafranke e Gorsuch (1984) definem como espiritual “a coragem para olhar ao seu interior e confiar, emergindo uma sensação de pertença, totalidade, holismo e abertura para o infinito”. Esta concepção é marcadamente oriental, individualista e intrasubjectiva caindo no risco do panteísmo e no esbatimento da intersubjectividade e alteridade, e até da própria Transcendência, diluindo-se numa força cósmica.
Elkins et alt (1988) definem espiritual como um modo de ser e de experienciar, que emerge da tomada de consciência da existência de uma dimensão de Transcendência à realidade humana, concretizada num conjunto de valores identificáveis face ao self, aos outros, ao mundo e à vida. Assim as dimensões configuradoras do homem espiritual são: (a) a confiança face ao sentido da vida pela abertura ao Transcendente; (b) o sentido de missão a realizar na vida pela relação com os outros; (c) a compreensão da vida como manifestação do Sagrado; (d) o equilíbrio entre os valores instrumentais/materiais e altruístas da solidariedade e da partilha; (e) uma visão positiva do mundo e face aos acontecimentos stressantes e trágicos da existência humana: como o sofrimento e a morte.
Nesta conceptualização, também psicológica mas não redutível às dimensões psicológicas da consciência, está subjacente uma visão abrangente e global da espiritualidade, património comum dos humanos que se abrem ao Transcendente, sem implicar a adesão a qualquer grande religião e/ou Igrejas.
Pensamos ser aqui que se situa a fronteira entre as experiências eminentemente espirituais multidiversas que emergem, por um lado, de uma convicção pessoal no Transcendente implicando um compromisso com valores espirituais e humanistas, e por outro, as experiências espirituais que se circunscrevem na adesão a uma religião organizada (Kelly, 1995), com um sistema integrado de dogmas, atitudes, actividades ritualizadas, através das quais os sujeitos constróem sentidos para as suas vidas (Corbett, 1990). Assim, o conceito amplo de espiritualidade relaciona-se com uma vivência circunscrita à esfera do pessoal, na relação com o Transcendente, que está para além de uma afiliação numa religião específica (Peterson & Nelson, 1987).
Finalmente, porque estamos inseridos num contexto socio cultural judaico-cristão, apresenta-se o conceito de espiritualidade do ponto de vista cristão. Como o conceito não é consensual, porque há tantas quantas os teóricos, opta-se por uma definição operativa proposta por um especialista da Teologia Espiritual, Matanic (1987) “ a espiritualidade é uma relação privilegiada com o Transcendente/Deus, que se explicita em determinadas verdades da fé e num estilo de vida segundo a proposta/projecto de Jesus de Nazaré, implicando uma missão de serviço à humanidade, explicitando-se em meios, práticas e rituais pessoais e comunitários”.
Neste conceito de espiritualidade estão implicadas as seguintes dimensões: (a) uma relação com o Transcende, concretamente, o Deus revelado por Jesus Cristo; (b) um conjunto de verdades dogmáticas; (c) o seguimento de Cristo como uma missão de serviço à humanidade; (d) esta missão é dinamizada pelo Espirito (Ruach) na celebração pessoal e comunitária (as Igrejas) de rituais conducentes à transformação do mundo segundo lógicas de Evangelho, assumindo uma centralidade inquestionável a Palavra de Deus e os Sacramentos que implicam na qualidade da acção humana configurada com os valores da mensagem cristã. A partir deste conceito global surgem uma multiplicidade de Espiritualidades cristãs específicas, como a espiritualidade Franciscana, Teresiana, Sãojuanista, Inaciana...
- Concluindo
Penso ser importante esta clarificação para sabermos de que realidades falamos quando a elas nos referimos e evitarmos cair em ambiguidadesm, quer relativamente à teologia, quer relativamente ao discurso da Psicologia.
Cada um dos discursos apresentam níveis de análise diferenciados relativamente à complexa experiência humana implicando ontologias e epistemologias próprias, bem como teóricos e profissionais de ajuda com as suas especificidades, com domínios de intervenção diferenciados, sendo importante identificar as fronteiras, ainda que frequentemente ténues, de cada profissional.
Estes dois níveis de análise devem coexistir, de forma autónoma, como serviço à compreensão e à transformação do humano, podendo ser útil o diálogo interdisciplinar, respeitador, cooperante e questionante, mas diferenciado.
No que concerne aos profissionais de intervenção ainda se torna mais pertinente e incisiva esta cooperação, independentemente das convicções e mundividências de cada um dos interlocutores. Isto é, os conselheiros espirituais devem encaminhar os seus clientes para os psicoterapeutas, sempre que o nível de análise e de compreensão do problema exceder o seu âmbito e possa estar em causa a qualidade de vida dos sujeitos (aliás, não poderá existir uma experiência espiritual plenificadora se as várias dimensões do desenvolvimento psicológico não estiverem integradas); assim como os psicoterapeutas deverão estar sensíveis à dimensão do espiritual quando esta interfere nas outras dimensões psicológicas, (independentemente de terem ou não fé), evitando, deste modo, prestar um pernicioso serviço ao cliente pela redução da realidade do humano às dimensões meramente psicológicas da consciência imanentista e desrespeitando os valores e convicções do cliente.
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Carlos Manuel Gonçalves e Joaquim Luís Coimbra Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
2002/2003
Artigo publicado nos Cadernos de Consulta Psicológica, 17/18, 2002-2003, pags. 277-284