ESPIRITUALIDADE E FORMAÇÃO HUMANA - Ferdinand Röhr

24/08/2015 16:30

Resumo: O presente artigo aborda a temática da espiritualidade num prisma filosófico pressuposto de que o conceito da espiritualidade só pode se afastar dos mo mediáticos na medida em que ela se insere numa compreensão do ser humano na sua integralidade e multidimensionalidade. Diferencia, nesse sentido, cinco dimensões básicas: sensorial, emocional, mental e espiritual, bem como um número não fechado de dimensões temático-transversais. Explicita o que se entende por dimensão espiritual a partir dos fenômenos de liberdade, verdade e amor. Compreende o processo da humanização humana como busca de incluir nas realizações humanas, no âmbito das dimensões temático transversais, sempre todas as dimensões básicas, principalmente a dimensão espiritual, gerando assim uma união continuamente mais coesa de todas Palavras-Chave: Espiritualidade. Formação humana. incondicional. Abstract: This article addresses the topic of spirituality in a philosophical assumes that the concept of spirituality can only move away from media and esoteric colloquialism to the extent that it is part of the understanding of the multidimensionality. Distinguishing, in this sense, five basic dimensions: physical, sensory, emotional, mental and spiritual as well as an unclosed number of cross meant by spiritual dimension from the phenomena of freedom, truth, and love. Understanding the process of humanization and, thereby, dimension within the cross-themes, always all the basic dimensions, especially the spir dimension, thus creating a continuous and more cohesive union of all the Keywords: Spirituality. Human formation. Integrity. 1 Professor Titular do Departamento de Fundamentos Sócio de Pernambuco; Rua Cardeal Dom Augusto, 848, Cordeiro, 50.630 REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO – UNIVERSIDADE DO SUL DE Biopolítica, Educação e Filosofia, p. 53 - 68, 2011. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. ESPIRITUALIDADE E FORMAÇÃO HUMANA O presente artigo aborda a temática da espiritualidade num prisma filosófico-antropológico. Parte do pressuposto de que o conceito da espiritualidade só pode se afastar dos mo mediáticos na medida em que ela se insere numa compreensão do ser humano na sua integralidade e multidimensionalidade. Diferencia, nesse sentido, cinco dimensões básicas: sensorial, emocional, mental e espiritual, bem como um número não fechado de dimensões transversais. Explicita o que se entende por dimensão espiritual a partir dos fenômenos de liberdade, verdade e amor. Compreende o processo da humanização e, com isso, a formação humana como busca de incluir nas realizações humanas, no âmbito das dimensões temático transversais, sempre todas as dimensões básicas, principalmente a dimensão espiritual, gerando assim uma união continuamente mais coesa de todas as dimensões. Espiritualidade. Formação humana. Integralidade. Multidimensonalidade. Apelo Spirituality and Human Formation This article addresses the topic of spirituality in a philosophical-anthropological perspective. assumes that the concept of spirituality can only move away from media and esoteric colloquialism to the extent that it is part of the understanding of the human being in its entirety and multidimensionality. Distinguishing, in this sense, five basic dimensions: physical, sensory, emotional, mental and spiritual as well as an unclosed number of cross-theme dimensions. Explaining what is ension from the phenomena of freedom, truth, and love. Understanding the process of humanization and, thereby, as the human quest for accomplishments include the human themes, always all the basic dimensions, especially the spir dimension, thus creating a continuous and more cohesive union of all the Spirituality. Human formation. Integrity. Multidimensionality. Unconditional appeal. Professor Titular do Departamento de Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação da Universidade Federal l Dom Augusto, 848, Cordeiro, 50.630-650 Recife – PE; frohr@uol.com.br. VERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA By Zumblick Ferdinand Röhr1 antropológico. Parte do pressuposto de que o conceito da espiritualidade só pode se afastar dos modismos esotéricos e mediáticos na medida em que ela se insere numa compreensão do ser humano na sua integralidade e multidimensionalidade. Diferencia, nesse sentido, cinco dimensões básicas: a dimensão física, sensorial, emocional, mental e espiritual, bem como um número não fechado de dimensões transversais. Explicita o que se entende por dimensão espiritual a partir dos fenômenos de e, com isso, a formação humana como busca de incluir nas realizações humanas, no âmbito das dimensões temáticotransversais, sempre todas as dimensões básicas, principalmente a dimensão espiritual, gerando Integralidade. Multidimensonalidade. Apelo anthropological perspective. It assumes that the concept of spirituality can only move away from media and esoteric colloquialism human being in its entirety and multidimensionality. Distinguishing, in this sense, five basic dimensions: physical, sensory, emotional, theme dimensions. Explaining what is ension from the phenomena of freedom, truth, and love. Understanding the as the human quest for accomplishments include the human themes, always all the basic dimensions, especially the spiritual dimension, thus creating a continuous and more cohesive union of all the dimensions. Multidimensionality. Unconditional appeal. Filosóficos da Educação da Universidade Federal PE; frohr@uol.com.br. P O I É S I S – REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO – UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA POIÉSIS, Tubarão, Número ESPECIAL: Biopolítica, Educação e Filosofia, p. 53 - 68, 2011. 54 Com certa frequência assistimos, hoje em dia, pessoas se declarando espiritualistas. Quando perguntamos o que isso, de fato, significa para elas, as respostas costumam ser as mais diversas. As mais comuns: a rejeição ao materialismo, seja ele político, econômico, filosófico ou ateísmo em geral; a crença numa força superior ao homem que confere sentido à vida; e, no mínimo, um distanciamento em relação às religiões formais e tradicionais. No demais, os conceitos variam das mais rasteiras declarações de autoajuda até os mais sinceros esforços de harmonizar-se consigo, com a humanidade e com o cosmo. Podem apresentar os coloridos do esoterismo mais folclórico, podem provir dos sectarismos de rituais e poderes inventados e vazios, de consumo de alucinógenos sob a manta de prática religiosa, do sincretismo aleatório de religiões num suposto espírito ecumênico, de um esforço holístico de juntar ciência, filosofia e tradições religiosas, especialmente as orientais, e, finalmente, da sincera busca de encontrar nas religiões a sua verdadeira essência. Não pretendemos, na nossa reflexão, fazer uma análise crítica de todas essas tendências que advogam para si a condição de espiritualistas. Julgamos mais produtivo submetermos-nos ao esforço de contribuir para um conceito de espiritualidade que tenta distanciar-se dos modismos do nosso tempo, compreendendo-a como parte fundamental e perene da humanização do ser humano. Propomos, portanto, esboçar, num primeiro passo, a nossa compreensão da espiritualidade para, em seguida, desenvolver algumas reflexões em torno da formação humana, resultando daquela compreensão. Em primeiro lugar, refletir sobre a espiritualidade implica, no nosso pensar, levar em consideração a integralidade do ser humano. Se admitimos, inicialmente de forma provisória, que a espiritualidade é uma das dimensões que fazem parte do ser humano, não podemos vê-la de forma isolada, sem nexo com as dimensões “profanas”. Criar um distanciamento intransponível entre a espiritualidade e as demais dimensões, afirmamos aqui antecipadamente, gera um misticismo falso e nocivo à formação humana. Essa primeira observação solicita uma apresentação breve das dimensões que fazem parte do ser humano. Não pretendemos elencar um conjunto completo e totalmente sistematizado dessas dimensões. Acreditamos que isso nem é possível. Estamos cientes também da possibilidade de estabelecer outras divisões e inter-relações. O que importa é transmitir uma ideia sobre em que direção pensamos. Distinguimos, num primeiro passo, cinco dimensões que chamamos de básicas: a dimensão física, que inclui a corporalidade físico-biológica, da qual em parte nem temos percepção; a dimensão sensorial representando as nossas sensações físicas, calor-frio, dorprazer físico, doce-amargo, etc., enfim a percepção que temos através dos nossos cinco sentidos: tato, visão, audição, olfato e paladar; a dimensão emocional, abrangendo a vida da nossa psique, os estados emocionais (medo, insegurança, euforia, apatia, tristeza, melancolia, impaciência, dispersão, solidão, saudade, indecisão, pessimismo, etc.) e suas respectivas movimentações e compensações; a dimensão mental que inclui, em primeiro lugar, o racional e lógico no sentido mais restrito, ou seja, aquela parte em que correspondemos naquilo que pensamos com todos os seres humanos, os pensamentos universais, formais (lógica, matemática), mas também a capacidade de reflexão - de questionar todas as coisas, inclusive a si mesmo -, a recordação e a memória, a imaginação e a fantasia, a compreensão e criação de ideias e, finalmente, a nossa intuição – quando sabemos sem poder justificar, em última instância, por que sabemos.2 A mais difícil de identificar é a quinta, a dimensão espiritual. Não se confunde essa dimensão com a religiosa, que em parte pode incluir a espiritual, mas que contém algumas características como as da revelação, enquanto intervenção direta de Deus, e de um tipo de organização social que, dessa forma, resultam estranhas ou desnecessárias à dimensão espiritual. Podemos nos aproximar da dimensão espiritual identificando uma insuficiência das outras dimensões em relação ao homem nas suas possibilidades humanas. Posso viver nas demais dimensões sem ser comprometido com nenhum aspecto delas. Entro na dimensão espiritual no momento em que me identifico com algo, em que eu sinto que esse se torna apelo incondicional para mim.3 Aprofundaremos as questões envolvidas nessa breve caracterização, logo após a apresentação da visão que temos da integralidade do ser humano. Além das dimensões mencionadas, distinguimos algumas dimensões temáticas que, por perpassarem as dimensões básicas, também podem ser chamadas dimensões transversais. Sem pretensão de sistematização, podemos mencionar a dimensão relacionalsocial, a prático-laboral-profissional, a político-econômica, a comunicativa, a sexuallibidinal e de gênero, a étnica, a estético-artística, a ética, a ecológica, a místico-mágico- 2 Retornaremos, posteriormente, à questão da intuição, pois se trata de um elemento crucial na caracterização da espiritualidade. 3 Nessa formulação inicial da dimensão espiritual, encontramos um parentesco com o conceito de existência em Karl Jaspers. Mesmo Jaspers não falando diretamente da espiritualidade, encontramos na sua filosofia, principalmente na sua metafísica, suporte conceitual para as nossas reflexões.  É impossível, como já anunciamos, caracterizar e sistematizar essas dimensões sem nos depararmos com superposições, zonas de intermediações e ambiguidades. É importante observar tanto a transversalidade com as dimensões básicas quanto as múltiplas relações entre as dimensões temáticas. Só para mencionar um exemplo: a dimensão sexual perpassa todas as dimensões básicas, da física à espiritual, e a negação desse fato degrada a mesma, mas também tem interfaces de natureza diversa com todas as demais dimensões. Quando organizamos as dimensões básicas do ser humano na sequência matéria física, sensação física, dimensão emocional, mental e espiritual, assim o fizemos de acordo com a densidade de cada realidade. A escala abrange do mais denso – a matéria física – ao mais sutil, o espiritual. A figura a seguir representa, nos limites que qualquer esquema inevitavelmente contém, as cinco dimensões básicas de acordo com seus graus de densidade material.

Com isso, questionamos a tradicional divisão radical que a filosofia ocidental estabelece entre matéria e espírito. Como já temos possibilidade, por exemplo, de medir fluxos de pensamentos eletromagneticamente, torna-se cada vez mais difícil manter essa dicotomia tradicional. Podemos afirmar, portanto, que todas as cinco dimensões mencionadas, em certo sentido, são matéria, compreendendo matéria não necessariamente como matéria física. Temos de distinguir, nesse caso, entre matérias mais densas e mais sutis. Isso significa também que as matérias das realidades mais sutis não têm as mesmas características e não são submetidas, necessariamente, às mesmas “leis” da matéria física. Só para dar um exemplo, sabemos que a intuição humana, que é uma função da dimensão mental, não está condicionada às condições de espaço e tempo. Inclusive, muitas das relações entre as dimensões básicas tornam-se mais compreensíveis partindo da realidade como escala entre a matéria física, na qualidade de mais densa, e a espiritual, como a mais sutil. Podemos perceber que as realidades mais densas influenciam mais facilmente e quase que instantaneamente as mais sutis. Quando algo causa uma dor forte, por exemplo, o nosso humor, quer dizer, o nosso lado emocional muda instantaneamente. Estados emocionais desequilibrados, ao contrário, precisam às vezes de anos e anos até se manifestarem como somatizações no corpo físico. Ou seja, as realidades mais sutis não deixam de influenciar as mais densas. Como diz o ditado popular: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. O que, portanto, é mais comum é que desarmonias e bloqueios nas dimensões mais densas impedem as atividades e manifestações das mais sutis. Uma alimentação deficiente, por exemplo, pode prejudicar capacidades de aprendizagem intelectual. O estado emocional de ira pode impedir a conexão com valores éticos relacionados à dimensão espiritual. Constatamos, portanto, a hierarquia e interdependência das dimensões entre si. Na verdade, o tipo de observações que apresentamos até aqui nos ajudou a estabelecer a sequência. A consequência imediata dessas constatações é reconhecer que não é possível interferir numa dimensão sem levar em conta as outras. E mais: tem que se atender cada dimensão naquilo que se constitui necessidades próprias dela. O desequilíbrio de uma dimensão, mais cedo ou mais tarde, desequilibrará as outras. Naturalmente, o desequilíbrio de uma dimensão mais densa se expressa de forma mais imediata e mais perturbadora do que o de uma mais sutil. Já é possível, agora, focar melhor a formação humana, caracterizando dois momentos distintos. Um que chamamos de hominização, exatamente como processo que se impõe naturalmente das dimensões mais  densas nas mais sutis. Pertencem ao processo de hominização todos os desenvolvimentos biológicos, psíquico-emocionais e cognitivos baseados num amadurecimento natural. A formação humana compreendida como humanização, ao contrário, seria o trabalho árduo de fazer valer a voz do lado mais sutil do ser humano, o espiritual. Sob esse ponto de vista não negamos o lado espiritual como dimensão norteadora do processo de humanização. Portanto, em termos de importância na ação pedagógica, não podemos estabelecer esse tipo de hierarquia, pois necessitamos das outras dimensões muito bem cuidadas para abrir o espaço que a dimensão espiritual assume: a função de guiar a nossa vida. O conceito de intregralidade do ser humano que adotamos tem o reconhecimento da importância específica de cada dimensão, tanto das básicas quanto das transversais, e a mútua interdependência de todas como princípio. A próxima figura simboliza a nossa afirmação para todas as dimensões transversais. Tentamos expressar no gráfico o fato de que todas as dimensões temáticas perpassam todas as básicas. O esquema apresentado, até aqui, afirma a centralidade da dimensão espiritual para a formação humana. Objetivo central da nossa reflexão, nesta primeira parte, é aprofundar a conceituação da espiritualidade em termos filosóficos. Legitimamos a introdução da dimensão espiritual, no nosso esboço inicial, pela insuficiência das quatro primeiras dimensões, a saber: a física, a sensorial, a emocional e mental, em relação às possibilidades humanas. Tentaremos esclarecer essa afirmação com a ajuda de três conceitos centrais e bastante polêmicos no pensamento filosófico: liberdade, verdade e amor. O espaço disponível neste trabalho obriga-nos a ser sucintos. Começamos com a liberdade e perguntamos de forma mais básica: somos livres? Se acreditamos que sim: quais as garantias que temos da nossa liberdade? No mais tardar, foi Immanuel Kant que nos demonstrou que não é a razão que nos permite certeza sobre a primeira questão. As possibilidades de pensamento sobre ela nos guiam necessariamente a antinomias (KANT, 1976, p. 541/2). Existem tantos argumentos contra como a favor. As ciências modernas, inclusive as humanas, parecem advogar pela não-liberdade, demonstrando sempre com mais nitidez relações de causa e efeito em que os seres humanos estão envolvidos. Exclui-se, portanto, a possibilidade de liberdade total, mesmo um filósofo como Sartre, em certa altura do seu pensamento, declarando-a com o intuito de aguçar o nosso senso de responsabilidade. Resta indagar se, por dentro das múltiplas determinações a que o homem está submetido – sejam elas de natureza genético-biológica, familiares, psicológicas, sociológicas, culturais, políticas, econômicas ou religiosas –, existe ainda um espaço de liberdade, de autodeterminação do sujeito. Uma ciência fiel aos seus próprios pressupostos jamais vai poder nos dar uma resposta definitiva a essa questão. Seguimos um raciocínio simples: tomemos como ponto de partida qualquer ato que cometemos na nossa vida. Para provar que esse ato é livre teríamos que excluir a possibilidade de que um ou um conjunto de fatores, conscientes ou inconscientes, determinou esse ato. Para tal, precisaríamos conhecer não só com certeza e exatidão todas as relações possíveis de causa e efeito que poderiam hipoteticamente ter participação no acontecimento focado, mas também a sequência e as circunstâncias completas dos fatos em que o acontecimento se deu. Mesmo um iniciante em pesquisa científica percebe, após pouca prática, que o levantamento desses fatos se expande no infinito, tanto no espacial quanto no temporal. Muito menos conhecemos todas as relações de causa e efeito, e seria demasiadamente otimista acreditar que um dia a humanidade as conhecesse por completo. Não temos, portanto, nenhuma possibilidade de  uma prova científica contundente, sequer da liberdade do mais simples ato nosso. Logicamente, o mesmo vale para a afirmação contrária. Não podemos provar, em última instância, a não liberdade de um ato, por mais que ele pareça determinado por fatores externos. Sempre é possível levantar a hipótese de uma sequência de atos livres que prepararam uma aparente fatalidade num ato humano específico. Supomos, portanto, uma outra instância para fundamentar a nossa percepção de liberdade. Será que se trata de uma emoção? Um drogado, por exemplo, pode sentir-se absolutamente livre na sua “viagem”. Objetivamente, ele é dependente. Uma pessoa perdidamente apaixonada pode sentir-se inteiramente livre na escolha da sua paixão, e, via de regra, só perceber a prisão em que entrou após meses ou até anos. Sentir-se livre não garante a liberdade. Da mesma forma não vamos encontrar o fundamento da nossa liberdade na dimensão sensorial, e muito menos na físico-corporal. Parece que, quanto mais densa a dimensão menos espaço de liberdade ela abre. Se essa observação procede, o lugar da liberdade encontra-se numa dimensão mais sutil do que a mental, ou não existe. Contra a hipótese da não-existência da liberdade levanta-se a experiência humana histórica em torno da luta pela liberdade.4 A crença na liberdade movimentou não somente as cabeças e corações dos filósofos e pensadores, mas sempre pessoas que para a realização da liberdade sacrificaram conscientemente a própria vida, abdicaram interesses e vantagens pessoais. Não precisamos pensar, necessariamente, apenas nos sacrifícios em prol da verdade política, social e econômica, mas também naqueles que ajudaram a escapar das fatalidades de eventos naturais, das limitações que as doenças nos impõem, das determinações culturais que nos invadem, das crenças que nos bitolam, da violência que nos atormenta. É verdade que em muitas dessas lutas identificamos motivações secundárias, não ligadas à questão da liberdade. Por outro lado, é difícil acreditar que as lutas em prol da liberdade se esgotam em motivações secundárias. Como já vimos: não existe a possibilidade de provar cientificamente que um determinado ato é um ato livre. Mas será que não existe um outro tipo de certeza, que não a racional, que faz o homem se comprometer com a liberdade? Será que essa certeza pode ter outra origem do que ser motivada pelo desespero diante da perspectiva de uma vida sem liberdade, totalmente pré-determinada e, portanto, absurda e sem sentido? Chamamos de intuição esse tipo de certeza. Veremos, a seguir, as complicações conceituais 4 Sobra a importância de pressupor a liberdade na teoria educacional, confere que essa noção envolve.5 Distingue-se da razão por não ser discursiva. As argumentações racionais fundamentam-se em razões e razões e razões... Uma certeza intuitiva é uma certeza da qual tenho convicção, mas sei que não disponho de argumento, em última instância, para justificá-la.6 Posso passar pela experiência: “Tenho certeza absoluta da minha liberdade. Minha decisão poderia ter sido bem diferente. Sei que tenho responsabilidade pelo que fiz.” Posso passar por essa experiência sem estar em consonância com preocupações de julgamentos sociais, culturais ou religiosos. Posso encontrar total aprovação externa para o meu ato, mas sei, internamente, que errei. Pode ser que as consequências de uma decisão sejam externamente desastrosas, mas tenho internamente certeza de que fiz certo. Em qualquer um dos dois casos, posso tratar levianamente a minha intuição: no primeiro, com o argumento “por que me culpar por uma coisa que ninguém me cobra?”; no segundo, pensando, “por que nadar contra a corrente e me complicar por causa de convicções das quais nem tenho comprovação?”. Também posso permanecer ligado às minhas certezas intuitivas e experimentá-las no meu dia-a-dia para consolidar o apelo de incondicionalidade que me trouxeram. Fica claro, nesse sentido, que a existência de uma certeza intuitiva depende do meu comprometimento com ela, em outras palavras: a própria liberdade só existe no momento em que alguém se compromete com ela. Pergunta-se: desse fato se deduz que a liberdade ou qualquer outra certeza intuitiva é meramente subjetiva? Nas outras dimensões básicas podemos sempre distinguir entre o lado objetivo e subjetivo. O meu corpo físico pode ser objeto, por exemplo, de um exame que faço nele. As sensações têm o correspondente objetivo que as provoca, bem como as emoções. A sentença lógica: se A=B e B=C, necessariamente A=C, existe objetivamente no papel. Pode, entretanto, ser reconhecida pelo pensamento subjetivo como de fato verdadeira? E na dimensão espiritual? Existe nela um correspondente objetivo? Pelo menos não no sentido das outras dimensões. Não se trata de um objeto que posso palpar, sentir ou pensar logicamente. Na intuição, a certeza objetiva vem junto com a subjetiva. No que diz respeito à liberdade, Karl Jaspers, por exemplo, não cansa de afirmar que junto com a percepção da própria liberdade vem a certeza de que ela não é criação minha, mas a certeza 5 Cf. também as reflexões sobre intuição e educação em RÖHR, 1999b, 2000. 6 Essa certeza revela-se mais nitidamente como intuição, quando ela vem de repente, com toda força, não deixando nenhuma dúvida. Mas, esse não é necessariamente o caso. Ela pode se anunciar como um incômodo quase imperceptível, em relação a uma posição estabelecida, e miná-la no decorrer do tempo, até que a certeza se instale, portanto sem saber fundamentá-la racionalmente.  Já vimos que a origem dessa doação não se pode encontrar no lado objetivo das quatro primeiras dimensões do humano, dimensões estas – mesmo Jaspers fazendo uma outra diferenciação da realidade – que correspondem àquilo que Jaspers chama de imanência (Cf. JASPERS, 1947, p. 50, cf. também RÖHR, 2003). Nesse sentido, a nossa dimensão espiritual seria o nosso lado transcendente, que tem como lado objetivo a transcendência.8 Não se trata da transcendência das religiões, em que ela se manifesta de forma objetiva em eventos, milagres, revelações e livros sagrados, baseados em comunicações diretas. A transcendência da “fé filosófica” (JASPERS) só é acessível indiretamente. A transcendência revela-se em forma de “cifras” (JASPERS), que ao mesmo tempo em que descem a um patamar objetivamente perceptível para o ser humano, afastam-se da transcendência tal como ela é, e só a revelam precariamente, sempre ficando aquém dela (Cf. JASPERS, 1970, 1973 e RÖHR, 2005). Nesse sentido estou, em termos jasperianos, sendo presenteado com minha liberdade pela própria transcendência, sem, portanto, encontrá-la de forma comprobatória na realidade objetiva e imanente. Por outro lado, qualquer fato dessa realidade objetiva imanente pode se tornar cifra da transcendência (Cf. JASPERS, 1947, p. 1031 e 1051; 1962, p. 158 e 193; 1973, p. 168), que aponta para a origem da minha liberdade na transcendência. Podemos resumir os resultados das nossas reflexões em torno do exemplo da liberdade em relação à espiritualidade. As dimensões básicas que chamamos imanentes não se bastam em si, são insuficientes em relação às possibilidades humanas. A liberdade, fenômeno que pode assumir relevância em qualquer dos pormenores do nosso dia-a-dia, revelou-se uma realidade que transcende as dimensões anteriores. Precisamo-nos comprometer por inteiro com ela para fazê-la perceptível para nós. Quando houver esse comprometimento, ela se revela no seu lado objetivo no ato intuitivo mesmo. Torna-se mais fácil, depois desse primeiro exemplo, abordar os dois que faltam. Começamos com a questão da verdade. Podemos afirmar que sabemos das dimensões básicas imanentes uma infinitude de verdades. Todas elas são parciais e relativas. Até as que aparecem mais seguras e incontestáveis, as da matemática, sempre são relativas, ligadas e 7 Encontramos essa caracterização em todas as partes da sua obra, em que Jaspers conceitua a existência como expressão da liberdade, p. ex. JASPERS, 1962, p. 119. 8 Jaspers trata essa questão pela primeira vez e de forma ampla no terceiro volume da sua “Philosophie”, intitulada “Metaphysik”. JASPERS, 1973.  Mesmo o maior cético ainda pretende passar o seu ceticismo como verdade. O mundo e a nossa história estão cheios de eventos em que homens tentaram fazer das verdades imanentes parciais, verdades absolutas. Todas essas tentativas terminaram em desastres relacionados à própria humanização do homem – dogmatismo, dominação e violência de todos os tipos. Isso não desvaloriza os enormes benefícios que a humanidade alcança no momento em que se utiliza desses conhecimentos parciais no âmbito da sua validade. A relação humana com a verdade esgota-se na realização das verdades parciais e nos desvios da sua absolutização? Mais uma vez, fazemos um empréstimo conceitual na filosofia de Karl Jaspers. Nas suas tentativas de caracterizar a ideia da universidade, ele encontra a origem das ciências no querer-saber incondicional (unbedingtes Wissenwollen (JASPERS, 1949, p. 114)). Grande parte das abordagens filosóficas e epistemológicas da atualidade nega a possibilidade de um saber desinteressado. Revelam os múltiplos interesses que o próprio conhecimento envolve, começando com o econômico até chegar aos interesses de classe, hegemonias culturais, interesses camuflados nas mais sofisticadas tentativas em torno de um conhecimento científico neutro. Pode até ser que consigamos demonstrar, com bastante nitidez, que determinados interesses se escondam atrás de uma suposta verdade. O que não é possível demonstrar externamente é que o querer saber incondicional é uma postura humana possível ou impossível. Encontramos o mesmo limite, tal como na nossa reflexão sobre a liberdade. O querer-saber incondicional é algo que assumo no meu íntimo ou não existe. Só eu mesmo posso saber se a minha busca de verdade não está guiada por interesses, sejam eles individuais ou sociais; só eu mesmo posso saber do meu esforço para enfrentar os medos que me impedem enxergar a mim mesmo como sou; só eu mesmo posso saber da minha disposição para enfrentar a realidade, sem as eternas maquiagens e distorções ao meu favor. A busca da verdade, sem cair em relativismos ou absolutizações, o simples querer-saber sem deixar-se guiar pelas consequências agradáveis ou não que a verdade traz para mim, tem origem na dimensão espiritual. Resta apontar a questão do amor. As tendências culturais e midiáticas do nosso tempo localizam o amor nas dimensões físicas, sensoriais e emocionais. Admite-se, de longe e não sem um ar de mistura de saudosismo e desespero, até o amor contemplativo,  platônico. Mas o que está em questão é o amor incondicional. Este não encontra sustentação nas dimensões imanentes do humano. A beleza e a atração física são passageiras, o lado emocional se sustenta em apegos e sentimentos de posse, como se revela, no mais tardar, na separação ou perda de um ente “amado”, fato este, que provavelmente levou filósofos, como Schopenhauer, a considerarem o amor uma ilusão, ou Nietzsche a identificar como última motivação do amor, o amor-próprio. Encontramos a mesma situação: não há prova do amor incondicional, mas encontramos indícios dele na história não só do imaginário da literatura e arte, mas também em atos de pessoas de destaque na história da humanidade, bem como principalmente em inúmeros gestos de anônimos no dia-a-dia. Amor incondicional só existe para aquele que se compromete com ele, pertencendo, portanto, à dimensão espiritual do homem. Os três exemplos, apontados até aqui, revelaram algumas características da dimensão espiritual. Nesse sentido podemos incluir na dimensão espiritual todos os princípios éticos e metafísicos que precisam, para se tornarem verdadeiros, da minha identificação com eles. Podemos pensar num princípio ético de Sócrates de preferir sofrer uma injustiça a cometê-la, na ideia do bem de Platão, no princípio de não violência de Gandhi ou, na metafísica, no Tao de Lao Tsé, no Uno de Giordano Bruno, na relação Eu e Tu em Martin Buber. Os exemplos são incontáveis. Fica evidente que, nesses exemplos localizados na dimensão espiritual, não se trata de uma identificação somente ao nível do pensamento e do discurso. Trata-se de uma identificação na totalidade, incluindo necessariamente um agir correspondente. Um saber que não se expressa na minha vida prática, seja ela pública ou particular, não alcançou ainda a dimensão espiritual. Uma convicção com que não me identifico por inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo ou não quero enxergar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As certezas sobre a própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva. Por isso chamo essa dimensão também de intuitivo-espiritual. Trata-se, na nossa posição, não de um intuicionismo que se opõe à razão com uma atitude irracional. A intuição é considerada uma fonte de saber suprarracional que, sem desprezar a racionalidade no seu âmbito próprio de atuação, auxilia-nos nas questões onde a própria razão se revela insuficiente por princípio. E mais ainda, aquilo que se ganha em termos de certeza no âmbito que vai além da racionalidade, perde-se em termos de generalização. A certeza intuitiva vale para mim. Ela se torna válida para outra pessoa somente no momento em que esta também se  compromete, por intuição própria, com a mesma certeza. Encontramos, nesse fato, um dos critérios mais importantes que distingue uma convicção baseada na espiritualidade, das demais. Ela tem verdade para mim e não permite a imposição aos outros. Sabendo do esforço, da luta e das dificuldades encontradas para chegar a uma convicção própria, não é de se esperar que ela se deixe “transportar” para outras pessoas sem sofrer a perda do sentido mais íntimo. Verdades identicamente comunicáveis não são de natureza espiritual, mas mental. A vontade de impor verdades nem tem sua origem na dimensão mental, mas na emocional: ganhar segurança e poder sobre os outros como forma equivocada de superar a própria incerteza. Ir pelo caminho da busca espiritual via certezas intuitivas, portanto, não é uma maneira de chegar seguramente a um consenso sobre as questões espirituais. Para alcançar consensos podemos nos servir das teorias filosóficas que indicam maneiras de conciliar, até certo ponto, posições e interesses diversos. Só que, antes de entrar num processo comunicativo em prol de um consenso socialmente viável, preciso ter certeza sobre as minhas posições próprias, preciso saber o que é negociável nas minhas posições e o que não, quais os meus interesses momentâneos e quais os princípios éticos que valem para mim de forma incondicional. É óbvio que essa última afirmação tem consequências profundas para o pensamento educacional. Antes de entrar nesta questão, voltemos para nosso esquema provisório das múltiplas dimensões humanas. Lembramos que todas as dimensões temáticas perpassam todas as básicas, portanto, também a espiritual. Rejeitamos, com isso, todas as posições que consideram a espiritualidade algo à parte, separada do dia-a-dia, que se pode isolar num determinado espaço ou tempo, como se pudéssemos dar conta da espiritualidade quando dedicamos determinadas horas a lugares sagrados a ela, e deixamos o resto da vida acontecer segundo as leis do profano. Nessa separação desvirtuamos tanto a espiritualidade quanto as dimensões imanentes. Podemos até afirmar que as nossas realizações nas dimensões temáticas só se tornam realmente humanas, quando incluem todas as dimensões básicas, da física até a espiritual. Como ilustração dessa observação, apontamos a filosofia dialógica de Martin Buber, que expressa de forma clara a necessidade da presença de todas essas dimensões numa relação inter-humana. Pensando na dimensão espiritual da realidade social, podemos nos lembrar da décima tese de Marx sobre Feuerbach, segundo a qual a sociedade humana é exatamente aquela em que todos socializam o que têm de mais humano. Difícil negar que isso seja um princípio espiritual. A complementaridade de Yang  Yin pode se tomar como cifra da espiritualidade na relação de gênero, a união na diversidade, na dimensão étnica. Finalmente, restringir a sexualidade às dimensões imanentes traz consigo a negação do lado humano dela. É fácil perder de vista a dimensão espiritual no fascínio de prazer momentâneo, é doloroso o acordar no vazio. O espaço disponível não permite uma demonstração da nossa afirmação em todas as dimensões e suas interligações. Mesmo se tivéssemos todo o espaço possível à disposição, não seria possível fechar a reflexão. Na compreensão apresentada, também não é tarefa que um autor possa fazer para o leitor. Cada um tem que procurar aquilo que em cada dimensão temática se revela para ele como orientação incondicional. Com isso, entramos no cerne da questão educacional que contempla nas suas reflexões a dimensão espiritual. Toda educação só pode ser compreendida como preparação para incluir a dimensão espiritual na nossa vida. E mesmo assim, a própria educação não tem como garantir que o educando de fato a inclua. É decisão livre dele e qualquer tipo de coação por parte do educador, por mais sutil que seja, pode estragar todo um esforço educacional de preparação.9 Esse princípio, porém, só vale para a dimensão espiritual. Não estamos pregando uma pedagogia de laissezfaire. Ao contrário! Precisamos lembrar que as dimensões imanentes são, em graus diferentes, mais densas que a própria dimensão espiritual. Desequilíbrios nessas dimensões interferem com muita força, e com facilidade se tornam bloqueios no nosso lado espiritual. Uma agressão física, por exemplo, pode deixar esquecer o princípio de não violência; um ciúme pode bloquear a confiança no amor do parceiro; um medo de escassez pode me levar a cumular além da cota, etc. Nesse sentido, a falta de educação direcionada às dimensões física, sensorial, emocional e mental pode boicotar facilmente a espiritual. Torna-se, portanto, prioridade atender às necessidade físicas, gerar um bem-estar sensorial, ensinar a equilibrar os estados emocionais, e a desenvolver as capacidades mentais, incluindo a própria intuição, sem perder de vista o objetivo principal de abrir o espaço para a percepção da dimensão espiritual.10 É fatal queimar etapas. Kant alertou que para ter a capacidade de seguir, de fato, a lei moral que encontramos em nós, precisamos de disciplina e esta não se 9 Trata-se aqui de um aspecto fundamental da ética pedagógica. Cf. RÖHR, 1999a, 2001a, 2001b, 2002. 10 O espaço disponível não permite aprofundar as tarefas pedagógicas relacionadas a cada dimensão imanente do ser humano. Trata-se de fato de tarefas distintas, de acordo com as características próprias de cada dimensão e se abre aqui um espaço de pesquisa bastante amplo no sentido de investigar se as diferenças de muitas das teorias pedagógicas não se justificam simplesmente pelo fato de se direcionarem a dimensões diferentes. Uma mesma atitude educativa pode ser adequada em relação a uma e não a outra dimensão. Encontram-se algumas reflexões sobre essas questões em RÖHR, 2006.  Isso vale para todas as áreas da espiritualidade. Conhecemos, nos nossos dias, como caricatura desse fato, os “gurus” dedicados integralmente a uma suposta espiritualidade, sem domínio das suas inclinações egoístas mais básicas, que geram obediência cega, via lavagem cerebral e abandono de princípios éticos, incapacitando os adeptos ao convívio social. A negligência das dimensões imanentes é um sinal seguro de estarmos perdendo a espiritualidade de vista. Finalmente, é tarefa da reflexão curricular abranger todas as áreas em que o homem expressa a sua humanidade e trazê-las para as atividades educacionais, de tal forma que revelem seu lado material, sensorial, emocional e mental, apelando para que o educando, ele mesmo, se comprometa com ela na sua dimensão espiritual (Cf. RÖHR, 2006). Formação humana inclui, portanto, todos os esforços educacionais na preparação do educando para encontrar a sua espiritualidade, mas se realiza de fato quando o educando assume a sua busca de forma autônoma. Nesse sentido, compreendemos a formação humana, educação e autoeducação para a espiritualidade.