Século XXI, Século da Espiritualidade? Leonardo Boff
Século XXI, Século da Espiritualidade?
Leonardo Boff
A característica básica do século XXI será a consolidação do processo de globalização. Esse fenômeno deve ser corretamente entendido. Ele não é apenas um dado econômico, político e cultural, afetando os seres humanos. Ele tem a ver com a história da própria Terra como Planeta. Mais e mais ganha adesão na consciência coletiva que a Terra é um superorganismo vivo que tem bilhões de anos de evolução e de história. A Terra é parte da história do universo; vida é parte da história da Terra e a vida humana é parte da história da vida. Cosmos, Terra, vida e humanidade não são realidades justapostas mas formam um todo orgânico.
Como humanos, somos filhos e filhas da Terra, melhor ainda, somos a própria Terra que chegou ao seu momento de consciência, de sentimento, de liberdade e de responsabilidade. A globalização se insere dentro desta perspectiva universal. Os seres humanos que estavam dispersos em suas culturas, confinados em suas linguas e estados-nações, agora estão voltando de seu longo exílio rumo à casa comum que é o Planeta Terra. A globalização representa esse momento novo da Terra e da espécie humana. Todos se encontram como num único lugar: no Planeta Terra. A partir de agora não haverá tanto a história da Alemanha ou do Brasil, mas a história da humanidade unificada e globalizada, unida com a história da Terra.
Esse fenômeno novo foi detectado com grande impacto emocional pelos astronautas em suas naves espaciais ou da Lua. Muitos deles, pasmados, confessaram: "daqui da Lua não há distinção entre russos e norte-americanos, entre brancos e negros, entre Terra e humanidade; somos uma única realidade viva, irradiante e frágil como uma bola de Natal dependurada no fundo negro do universo; temos o mesmo destino comum; devemos aprender a amar a Terra como a nossa Casa Comum".
A globalização traz consigo uma consciência planetária. Temos apenas esse Planeta para morar. Importa cuidar dele como cuidamos de nossas casas e de nossos corpos. E estamos todos ameaçados seja pelo arsenal de armas nucleares e químicas já construidas e armazenadas que podem destruir a biosfera, seja pela sistemática agressão aos ecosistemas que colocam em risco o futuro do Planeta. Desta vez não haverá uma arca de Noé que salve alguns e deixe pereceber os demais. Ou nos salvamos todos, biosfera e humanos, ou pereceremos todos.
Essa consciência coletiva forçará a criação de orgnismos internacionais destinados a gerenciar os interesses coletivos destinados a garantir um destino comum para todos e para o Planeta. Mais e mais nos sentiremos como uma única sociedade mundial, una pelas convergências comuns e diversa pelas expressões culturais diferentes de realizar essa unidade. Sentir-nos-emos como uma única família, a família dos humanos. Esse sentimento de família irá criar uma nova solidariedade. O escândalo de dois terços da humanidade, feita de pobres e marginalizados será tido como intolerável. Far-se-ão políticas globais para criar um tipo de sociedade mundial na qual todos possam caber com um mínimo de dignidade. Haverá mais justiça societária e menos violência no mundo.
O fenômeno da globalização e de sua correspondente consciência planetária dão origem a um outro paradigma civilizacional. Ele se caracteriza por um novo modo de relacionar-se com a natureza e com os povos, por uma nova forma de produção, por uma redefinição da subjetividade humana e do trabalho. Vamos considerar alguns destes pontos.
Na medida em que cresce a consciência planetária cresce também a convicção de que a questão do meio-ambiente, da ecologia, é o contexto de tudo, das políticas públicas, da indústria, da educação e das relações internacionais. Os recursos não renováveis estão se exaurindo e o equilíbrio físico-químico do Planeta está profundamente afetado. Ou mudamos de padrão de comportamento para com a natureza ou vamos ao encontro do pior. Por isso a sociedade do século XXI consumirá com mais responsabilidade. Fará uma nova aliança de respeito e de veneração com a natureza. O desenvolvimento se fará com a natureza e não contra ela ou à custa dela, como se fez durante séculos.
Haverá um pacto social mundial entre os povos baseado em três valores fundamentais que todos assumirão: (1) salvaguardar as condições para que o Planeta Terra possa continuar a existir e a co-evoluir; (2) garantir o futuro da espécie humana como um todo e as condições de seu ulterior desenvolvimento;(3) preservar a paz perpétua entre os povos como um meio de solução de todos os conflitos que sempre existirão.
A sociedade do século XXI será profundamente uma sociedade do conhecimento, da informação e da automação. Terá incorporado socialmente a nova natureza do processo tecnológico. A tecnologia inaugura uma nova história. Até agora as sociedades se construiram sobre a força do trabalho humano, completado e potenciado pela máquina. O trabalho construíu tudo, modificiou a natureza e originou a cultura. Agora o robot e os computadores substituem o ser humano. Milhões de trabalhadores são dispensados. Nem sequer entram a compor o exército de reserva de mão de obra a serviço do capital. São excluidos do processo produtivo.
Como ocupá-los com sentido? Como passar do pleno emprego para a plena atividade? Os trabalhadores deverão ser flexíveis, mostrar habilidade para trabalhos e atividades produtivas não vinculadas ao mercado. Possivelmente o ministério da cultura e do desporto será um dos ministérios mais importantes dos governos futuros, pois eles deverão criar alternativas de ocupação para milhões que estarão fora do mercado do trabalho assalariado. Por outra parte, o trabalho, libertado do regime de salário, assumirá seu sentido originário de atividade plasmadora da natureza a partir da criatividade humana. Os autômatos libertarão o ser humano do regime da necessidade de ter que trabalhar para viver. Eles inauguram o regime de liberdade que permite ao ser humano expressar-se de uma forma que somente ele, sujeito livre e criativo, poderá fazer.
A nova relação para com a natureza no sentido de um reencantamento e de maior benevolência fará que milhões trocarão as cidades pela vida no campo ou em cidades menores integradas ecologicamente com o meio-ambiente. A preocupação pela qualidade de vida fará que as megalópoles sejam transformadas profundamente pela recuperação dos rios, das paisagens, da pureza da atmosfera e de sua riqueza cultural.
A automação do processo produtivo que aludimos acima abrirá um espaço muito grande para a liberdade humana, para o tempo livre e para o lazer. O encontro das culturas mostrará formas diferentes de sermos humanos O homem terá menos coações sociais e mais liberdade para decidir seu projeto pessoal. Os valores da subjetividade, a singularidade de cada pessoa, suas preferências e filosofias de vida serão vistos positivamente como riqueza e não como ameaça à unidade humana. O ser humano, devido à educação ecológica incorporada em todas as instâncias, será mais sensível, mais compassivo, mas respeitoso e mais cooperativo.
A liberdade conquistada redefinirá o estatuto da família. Ela não se ordena, primeiramente, à procriação. Ela será o espaço onde a experiência do amor e da intimidade poderá ganhar estabilidade e se transformar num projeto a dois. As coações sociais e legais continuarão, pois a história da desigualdade e até de guerra entre os sexos possui milhares de anos e se cristalizou em arquétipos do inconsciente coletivo e em certos padrões de comportamento social. Mas de forma crescente os parceiros organizam suas relações de forma mais igualitária e democrática como expressão criativa de seus sentimentos e menos como ajustamento a imposições sociais.
Talvez uma das transformações culturais mais importantes no século XXI será a volta da dimensão espiritual na vida humana. O ser humano não é somente corpo que é parte do universo material. Não é também apenas psiqué, expressão da complexidade da vida que se sente a si mesmo, se torna consciente e responsável. O ser humano é também espírito, aquele momento da consciência no qual ele se sente parte e parcela do Todo, ligado e re-ligado a todas as coisas. É próprio do espírito colocar questões radicais sobre nossa origem e nosso destino e se perguntar pelo nosso lugar e pela nossa missão no conjunto dos seres do universo. Pelo espírito o ser humano decifra o sentido da seta do tempo ascendente e se inclina, reverente, face Àquele mistério que tudo colocou em marcha. Ousa chamá-lo por mil nomes ou simplesmente diz Deus.
Mais do que religião o ser humano busca espiritualidade. A religião codifica uma experiência de Deus e dá-lhe a forma de poder religioso, doutrinário, moral e ritual A espiritualidade se orienta pela experiência de encontro vivo com Deus, prescindo do poder religioso. Esse encontro é vivido como gerador de grande sentido e de entusiasmo para viver.
O século XXI será um século espiritual que valorizará os muitos caminhos espirituais e religiosos da humanidade ou criará novos. Essa espiritualidade ajudará a humanidade a ser mais corresponsável com seu destino e com o destino da Terra, mais reverente face ao mistério do mundo e mais solidária para com aqueles que sofrem. A espiritualidade dará leveza à vida e fará que os seres humanos não se sintam condenados a um vale de lágrimas mas se sintam filhos e filhas da alegria de viver juntos nesse mundo.